O tema de hoje é muito querido por aquela que vos escreve: ‘Avatar: a lenda de Aang’, e o impacto que deixou no mundo. Muitas pessoas podem não sabem, mas apesar do estilo de animação de ‘Avatar’ lembrar o estilo dos animes japoneses, a série é um cartoon da Nickelodeon.
Avatar, criação de Michael DiMartino e Bryan Konietzko, sofre críticas similares a produções como ‘Raya e o Último Dragão’, da Disney, pela confusa tentativa, da prespectiva branca, de ‘representar’ e ‘dar voz’ para diferentes culturas asiáticas. Michael e Bryan são ambos homens brancos que se basearam principalmente na cultura do sudeste asiático e da população nativo americana para criar seu show.
É visto que, por exemplo, os Templos do Ar são associados ao Budismo tibetano, a Tribo da Água tem seus costumes e roupas inspirados nos Inuítes, membros da nação indígena esquimó que habitam as regiões árticas do Canadá, do Alasca e da Groenlândia. O Reino da Terra é visto como inspirado nos costumes e roupas da China (como da dinastia Tang, por exemplo), Japão e também da Coreia do Sul, enquanto a Nação do fogo carrega fortes elementos da Tailândia e do Camboja. É possível destrinchar essa questão no vídeo feito por Mina Le.
As filosofias da cultura chinesa, japonesa, indiana e tibetana são amplamente usadas durante o show. Assim como ‘Raya’, Avatar carrega consigo uma grande ‘sopa’, em que misturam principalmente o sudeste asiático em um único prato. Embora tenha existido pesquisa e cuidado na hora de criar o show, as diversas críticas em torno do desenho são, mais do que tudo, válidas. Hoje, mais do que nunca, existe um grande movimento ativista a favor da representatividade positiva do leste asiático, e com Avatar se fez o inverso por muito tempo, retirando a voz e protagonismo dos participantes daquela cultura.
É triste que, embora feito com ‘boas intenções’, produções como estas ocupam o espaço de artistas do sudeste asiático. Isso não é longe da verdade, já que no filme ‘live action’ do desenho, todos os personagens sofrem de ‘whitewashing’ e perdem também personalidade e carisma. Com essa questão compreendida, seguiremos em frente. O propósito do artigo será mencionar os pontos positivos da obra, mas não poderiamos deixar passar as evidentes falhas e rupturas sociais que também causou.
O conceito
‘Avatar: a lenda de Aang’ conta a história de um garoto dominador de ar chamado Aang. No universo do desenho o mundo é dividido em quatro nações: a Tribo da Água, o Reino da Terra, os Templos do Ar e a Nação do Fogo. Em cada um dos quatro locais é possível encontrar pessoas que dominem os respectivos elementos de sua nação, sendo o Avatar o único capaz de controlar os quatro elementos.
Elementos da filosofia hinduísta surgem à medida em que eles tratam sobre a reencarnação e conexões com o mundo espiritual. No desenho, o avatar sempre está renascendo e iniciando um novo ciclo para os elementos da natureza, além disso, ele é uma ponte entre o mundo real e espiritual podendo interagir com os dois universos. A religião hinduísta é simbolizada como mensageira de paz e conservação da natureza, características principais para manter o mundo em equilíbrio. Apesar disso, é interessante destacar que Aang tem um arco de desenvolvimento muito bom, não sendo uma “entidade mítica”, tampouco uma “figura messiânica”. Aang lida com muitos sentimentos humanos como a raiva, luto e insegurança, assuntos que apenas o tempo e a disposição em aprender e escutar conseguem fazer com que ele evolua.
A dominação dos elementos da natureza também é uma alegoria para a dominação dos nossos sentimentos e receios: apenas com a mente limpa podemos realmente alcançar um estado de equilíbrio. É nesse momento em que vemos novamente elementos do budismo, pois no final, para alcançar a paz interior o mais importante é a simplicidade e o foco.
A guerra
Embora seja um desenho infantil, Avatar trata de assuntos sérios de uma maneira mais profunda e desenvolvida do que muitas obras genéricas. Por 100 anos Aang, o Avatar, esteve desaparecido, e durante esse tempo a Nação do fogo atacou os outros povos com uma política imperialista e invasiva. Esses 100 anos marcaram a vida de cada um dos personagens. Os irmãos Katara e Sokka, por exemplo, são os melhores amigos do protagonista; eles trazem em sua história o luto após a morte de sua mãe. Pela ausência da figura materna e pelo sofrimento advindo do trauma, em tempos de guerra, precisaram amadurecer rápido e desenvolver um senso de responsabilidade para que pudessem cuidar de seu povo. O próprio Aang descobre que todo o povo do ar, onde foi criado, foi vítima de genocídio pela Nação do Fogo. São temas pertinentes, abordando questões como imperialismo, guerra, divergências culturais e governos totalitários.
A península asiática passou por diversas guerras, e não é difícil encontrar telespectadores apontando a Nação do Fogo como uma alegoria aos ideais imperialistas do Japão durante a Segunda Guerra Mundial.
Entretanto, o desenho subverte a ação de chamar apenas uma nação de “vilã” e aponta a dualidade de todas as nações. Inclusive, o próprio antagonista, o príncipe Zuko, questiona os ideais violentos da Nação do Fogo e passa por um arco de transformação.
O Reino da terra, em Ba Sing Se, que era vista como a principal resistência à Nação do Fogo, na verdade submetia os cidadãos a um regime totalitário, em que os acontecimentos da guerra não podiam nem ser mencionados. Pode ser possível comparar essa situação como o que aconteceu na vida real com países que negaram e adulteraram dados sobre a COVID-19.
“Avatar: a lenda de Aang” é um desenho crítico, leve, mas ao mesmo tempo enriquecedor. Com episódios curtos, é uma ótima pedida para maratonas de fim de semana ou para assistir durante o almoço. O pequeno feixe de esperança surge quando um novo live action está sendo produzido pela Netflix, após a frustrante e orientalista tentativa de ‘O Último Mestre do Ar’, lançado em 2010. A produção, ainda sem data de estreia, prometia ser fiel ao material original, no entanto acumula polêmicas apesar do cast diverso e quase integralmente asiático. De qualquer forma, as expectativas do público e dos fãs estão favoráveis e esperamos conseguir uma retratação cultural fiel e uma adaptação impressionante da história.